Por Rev. Ewerton B. Tokashiki
O que conheceremos no estado de
glorificação não anulará o que aprendemos no tempo presente. Então,
surge a questão se teremos lembrança de quem fomos aqui, de nossos
parentes e amigos, das coisas boas e tristes que ocorreram conosco
quando estivermos no novo céu e nova terra? Mas será que a Escritura
nada tem a nos dizer acerca disto?
Este estudo não se refere à memória dos
salvos ou condenados durante o estado intermediário, comumente chamado
céu e inferno, mas ao seu estado eterno após o juízo final. Pelas
evidências bíblicas sabemos que aqueles que estão no céu ou no inferno
usufruem de consciência e memória dos seus sofrimentos, ou, clamam dia e
noite para que Deus manifeste a sua justiça sobre os ímpios (Lc
16:19-31; Ap 6:9-11).
A problematização toda se resume no fato
de que há quem pense que, após o juízo final, não haverá nenhuma
recordação dos eventos passados. Concluem que quando Deus estabelecer
definitivamente a realidade do novo céu e da nova terra, Ele anulará
toda lembrança que envolve sofrimento. Um escritor afirmou que “sequer
recordaremos deste velho mundo a que chamamos terra... não poderemos
ainda que o queiramos. Simplesmente não virá às nossas mentes.”[1] De
modo semelhante Millard Erickson opina que
"poderíamos deduzir que não recordaremos
de nossos fracassos, pecados passados, nem das pessoas amadas que
tenhamos perdido, pois isto introduziria uma pena que é incompatível com
“Deus enxugará toda dos seus olhos; e não mais haverá a morte, nem
pranto, nem clamor ou dor, porque as primeiras coisas passaram” (Ap
21:4)."[2]
Ele crê que haveria completa
descontinuidade de conhecimento entre o tempo presente e o futuro. Seria
como se Deus simplesmente apagasse a memória dos glorificados,
fazendo-os esquecer de tudo o que se refere ao sofrimento em seu estado
decaído e, desfazendo toda relação mental com aqueles que foram
condenados à punição eterna, cancelando deste modo as suas recordações
acerca de quem eram, ou quais vínculos afetivos tiveram anteriormente.
Erickson ainda pressupõe que saber que os seus amados não desfrutarão da
vida celestial, causaria um sofrimento desnecessário e impróprio, visto
ser este eterno estado somente de satisfação na presença gozosa do
Senhor Deus. Entretanto, esse pensamento não condiz com o ensino das
Escrituras, e preserva uma errônea premissa de que será anulada a
recordação dos efeitos do pecado naquele estado de glória.
Pensemos em algumas questões para que
cheguemos a uma conclusão segura neste assunto. Não há na Escritura
claro ensino de que Deus apagará a memória dos salvos que estão no céu,
neste tempo intermediário; nem mesmo há indicação bíblica de que no
futuro os glorificados não terão memória das coisas passadas. Memória e
identidade mantêm relações inseparáveis. O que Carter Lindberg afirma da
memória no tempo presente também pode ser declarado para os que estarão
no estado de glorificação, ou seja, a “perda da memória não é apenas a
ausência de ‘fatos’ – é a perda da identidade pessoal, familiar, amigos e
de todo o complexo de significados da vida.”[3] Deus ressuscitará a uns
e transformará a outros, mas a glorificação não anulará a identidade
essencial de ninguém. Os ressurretos serão funcionalmente perfeitos em
todas as suas faculdades.
Será que na perfeita eternidade seremos
menos inteligentes do que no presente tempo afetado pelo pecado? Wayne
Grudem comentando 1 Co 13:12 interpreta que Paulo “diz apenas que
conheceremos de modo mais completo ou intenso, ‘como também somos
conhecidos’, ou seja, sem nenhum erro nem interpretação incorreta em
nosso conhecimento.”[4] O discernimento e a sabedoria serão dominantes
em nosso senso crítico e conheceremos perfeitamente com a mente de
Cristo.
Após a glorificação usufruiremos de uma
inteligência que será capaz de assimilar e relacionar informações entre
si, e mais, uma inteligência emocional glorificada. Não estaremos mais
sujeitos a afeições pecaminosas, nem tenderemos a sentimentos
desordenados e, deste modo, a memória não será instigada com emoções
corrompidas por vingança, amargura, insatisfação, trauma ou algo que
possa causar sofrimento como neste tempo presente. Mesmo que nos
lembremos de situações entristecedoras, eventos dolorosos e pecados
vergonhosos, estas recordações não produzirão algum tipo de depressão,
nem suscitarão traumas, mas exaltará a misericórdia de Deus!
No estado futuro o corpo será
glorificado como o do nosso Senhor Jesus (1 Co 15:35-49). Embora
houvesse descontinuidade da aparência afetada pelas consequências do
pecado e da terrível tortura sofrida antes e durante a crucificação,
podemos perceber que a mente de nosso Senhor permaneceu intacta após a
ressurreição. Ele sabia, recordava e ainda repreendeu os discípulos por
não crerem naquilo que ele havia ensinado antes de ser preso. No céu os
filhos de Deus têm a sua memória preservada, então, por que devemos crer
que no novo céu ela deixará de existir?
Lemos nas Escrituras, que os redimidos
no céu estão louvando a Deus cantando “Santo, Santo, Santo é o Senhor
Deus, o Todo-Poderoso, aquele que era, que é e que há de vir” (Ap 4:8).
Em sua visão o apóstolo João descreve que “quando ele abriu o quinto
selo, vi debaixo do altar as almas daqueles que haviam sido mortos por
causa da palavra de Deus e do testemunho que deram. Eles clamavam em
alta voz: ‘Até quando, ó Soberano santo e verdadeiro, esperarás para
julgar os habitantes da terra e vingar o nosso sangue?’ Então cada um
deles recebeu uma veste branca, e foi-lhes dito que esperassem um pouco
mais, até que se completasse o número dos seus conservos e irmãos, que
deveriam ser mortos como eles” (Ap 6:9-11). Há neles uma consciência das
coisas passadas que lhes ocorreram por causa de sua submissão ao
Evangelho de Cristo. Eles não estão invocando por algo que não sabem,
nem clamando por alguma coisa que não recordam!
A perda de memória afetaria os motivos
de gratidão de louvor a Deus realizado no passado.[5] Eles adorariam a
Deus por tão grande salvação, ou, pelos livramentos, e ainda, pela
providência nas necessidades, ou, pelo conforto em meio à dor e
perseguições e à humilhação desmedida? A história exemplifica o
testemunho de milhares de mártires que viveram e morreram, cantando
adoração fielmente a Cristo Jesus.
Os saduceus em sua capciosa questão,
pressupondo a não ressurreição futura, interpelam a Jesus acerca de quem
seria o esposo da mulher que tivesse se casado sucessivamente com sete
irmãos (Mt 22:23-29). Tanto a pergunta dos saduceus, como a resposta de
Cristo, implicam que a viúva e os seus maridos se reconheceriam na
ressurreição, por haver continuidade de memória, entretanto, não seriam
mais cônjuges, pois haverá uma descontinuidade de relação marital entre
eles.[6]
Devemos considerar que a perda de
memória de tudo o que viveram e dos seus conhecidos, também seria uma
forma de sofrimento. Aqueles que convivem com pessoas que padecem do mal
de Alzheimer sabem o quanto é doloroso a anulação de suas lembranças,
porque envolve a anulação de identidade e vínculos afetivos. A memória
preservada poderá trazer algum sofrimento inicial, mas seremos
suficientemente confortados na nova terra. A lembrança de eventos
dolorosos será interpretada à luz da providência de Deus. Ali
entenderemos tudo o que o Senhor quiser nos revelar, pois, por enquanto
somos incapazes de compreender.
A ausência de pessoas amadas será aceita
por submissão à soberania de Deus (Rm 9:1-18; 11:33-36). A nossa
percepção da justiça de Deus será perfeita em contraste com a
perversidade de seus pecados contra a divina santidade, e a sua
consequente e merecida condenação eterna. Neste aspecto se o nosso amor
por nossos familiares e amigos for maior do que o nosso amor e temor
pelo Senhor, então estamos desalinhados do propósito de Deus. Os maiores
motivos de consolo diante de possíveis lembranças tristes será uma
visão gloriosa, bem como a gozosa presença e a comunhão perfeita de Deus
(Ap 22:1-4). Jonathan Edwards sustentou que “a felicidade do [novo] céu
é progressiva e tem vários períodos nos quais tem um novo e glorioso
avanço que consiste em contemplar as manifestações que Deus fez de si
mesmo na obra da redenção.”[7] Todos os salvos de todas as épocas se
reconhecerão porque Deus revelará a identidade de cada um.
Não há motivos para temermos ter memória
no novo céu e nova terra. Tudo o que lembrarmos em estado perfeito de
glorificação, sem conflitos e desordens, será conforme a finalidade para
a qual fomos primeiramente criados: a glória do Senhor!
Fonte: EIS-ME-AQUI
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